segunda-feira, 30 de junho de 2014

O CÃO E A LINHA DA VIDA .


João Joaquim

O encontro foi fortuito, inopinado. Eu diria melhor, que foi acidental, considerando que eu me encontrava naquela esquina por causa de um incidente ortopédico. Explico-me mais, eu me achava naquele encontro de duas ruas fazendo alongamentos e aquecimento antes de minha corrida matinal. O meu hábito é levantar, fazer um desjejum e antes de rumar para o trabalho fazer minha atividade física . Meus  alongamentos e aquecimento incluem músculos da cintura escapular, isto é; dos ombros. Em medicina temos duas, a cintura do cinto e a cintura de pendurar bolsas que abrange os ombros.
Há três anos que padeço de uma inflamação dos ombros. Uma tal de capsulite adesiva. O adjetivo já  diz tudo, ela é adesista, nos pega e não desiste fácil. Haja fisioterapia e manipulação anatômica para recuperação, que nunca é total, uma sequelazinha  é garantida.
O encontro fortuito e inopinado foi que nesse entremeio de minha autofisioterapia surgiram uma senhora e um cão. O cachorrinho, claro ,preso à coleira e puxado pela proprietária. Engatamos uma conversa motivada pelo bichinho.
-Todos os dias a sra. passeia com o cão?
- Quase todos os dias! Só não saio quando ele tem que tomar os remédios.
- Remédios? Mas, para quê?
- Ele teve câncer de garganta e faz quimioterapia.
- Câncer de garganta.  - Ah! Pode acontecer, o bicho parece gente. De tudo ele pode adoecer. De infarto, de tumor, de reumatismo, de diabetes. Afinal, até um ministro já cravou em alto e bom som, cachorro também é gente ( Rogério Magri, ex ministro do trabalho do Brasil).
Neste nosso colóquio o bichinho fez uma pose de micção para marcar o território e latiu. O latido era bem desafinado de um som rascante e pigarroso. Fiz alguns estalidos com os dedos para conquistar a amizade do animal, ao que prontamente ele saltitou e de prumo colocou-me as duas patas. A voz rouca denunciava sério comprometimento de laringe e pregas vocálicas. Laringotraqueite estridulosa. O cão era uma simpatia em cachorro. Um cruzamento de basset com vira-lata, de porte médio, de cor tirante  a cinza- gris, com pelagem muito trófica e vistosa .  Tornei-me para aquela senhora e indaguei:
- Quantos anos tem o seu amiguinho?
- Doze anos.
- Respondi que seria uma pessoa de 60. Josefina, a senhora do cão fez um merencório  silêncio.
Havia uma crispação em seu rosto que denunciava tristeza e pressentimento ruim pela saúde de seu animal.
- Não fique assim dona Josefina, explico-lhe uma coisa de que não sabe. O bicho é irracional. Ele não tem a razão e a lucidez que temos sobre as coisas. Para ele toda doença é igual. Ele não tem a noção da gravidade. Bem pode ver pela alegria que ele mantém de sempre. Josefina enxuga a face dos pingos brotados dos olhos e se foi num caminhar reflexivo.
A vida é isso. Doenças vêm para todos. Não importa a carga de pecados e outras culpas. Afinal que culpa ou pecado tem um dócil e amigo cão para ser acometido de tão limitante doença. É o risco dos vivos; para adoecer basta estar com saúde. E nas palavras de João Guimarães Rosa viver é perigoso. A vida de cada ser vivente se guia por uma linha. São duas pontas, uma de entrada  , o nascimento, outra de saída e última a morte. Nascimento , vida e morte se equilibram neste fio. Um revés qualquer, uma doença pode romper este fio e encurtar a linha da existência .    
  
João Joaquim médico- cronista DM  joaomedicina.ufg@gmail.com

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