quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A CULPA É DA ETERNA

   A CULPA É DA ETERNA 

João Joaquim   
      
 Aquela senhora bateu em meu consultório sem um sintoma bem definido. Maria de Fátima da Piedade. Pia era a alcunha com que era conhecida de amigos e vizinhança.
- Mas, dona Pia o que motiva a sua consulta?
- Doutor, nem eu sei direito o que sinto. Na verdade se contar  tudinho é um rosário de coisas de muitas horas.
- Não importa dona piedade, quer dizer dona Pia, o que interessa é a senhora me contar o que mais lhe aflige e incomoda.
- Sabe doutor, sinto muita ausência, uma ausência não dos sentidos, uma ausência de isolamento, de estar no mundo sem ninguém em volta de mim, mesmo sendo mãe, avó e bisa de filhos, netos e bisnetos.
- Tá bem dona Pia, mas vamos aos outros informes de sua saúde, do passado de doenças, de como a senhora viveu e toca a vida  .
Para encurtar o perfil clínico de nossa personagem, dona Piedade era potiguar de nascimento e batismo, mas tinha sido criada em Castro Alves - BA, terra do poeta condoreiro e bardo das causas abolicionistas. Tinha estudado somente os dois anos do ensino fundamental. Mal lia, mal assinava o nome. Ia fazer 70 anos. Poucas vezes tinha ido ao médico;  era mãe de 13 filhos, fora os abortos de que não se lembrava quantos. Os  partos todos foram com amigas parteiras. Dos 13 filhos, 10 eram vivos. Os outros  três dos 13 tinham falecido ainda recém-nascidos  de causas ignoradas. Nunca tinha submetido a alguma cirurgia, passou por uma internação de 4 dias na BA, por uma febre impalustre (malária).
De remédios, dona Pia usava apenas um comprimido de aspirina e algumas pérolas de arnica, receitadas por um raizeiro.
Do mesmo curandeiro usava vez por outra chás de sabugueiro e gotas do neca para algumas "macacoas"  e dor de cabeça.
Antecipo uma etapa do rito de uma consulta médica padrão e adentro no exame físico. Dona Pia mostrava-se em plena lucidez, suas expressões demonstravam uma idosa bem orientada no tempo e espaço. Mostrava-se zelosa com a higiene corporal e sobriedade simples na indumentária e adornos corporais. Os achados do exame clínico e aferições do sinais vitais eram compatíveis com faixa etária; ou seja rugas da senilidade, marcas de expressão acentuada no rosto, pele com marcas de exposição solar  Alguns exames básicos foram-lhe indicados buscando alguma disfunção de tireoide, de rins, de pulmão, de glicose, de lipídios  e exame de papanicolau para rastreamento de câncer ginecológico. Lembro que nada a ver com o papa ou com Nicolau , mas ao teste idealizado pelo famoso médico grego.
Retorno ao fecho da consulta
 -  Dona Pia, mas a senhora me dizia que se fosse contar tudo seria uma prosa longa, um rosário de queixas de muito tempo. De todo modo penso que deve ter algum incômodo, algum mal-estar que mais atormenta. A senhora pode me escolher um.
- Tá bem doutor, muito do que sinto, eu acho que é da vida sofrida, das pelejas da família, da criação e labuta com os filhos. Fiquei viúva com 40 anos e tudo ficou nas minhas costas . Hoje eu moro com outra irmã mais nova. Aqui e acolá algum filho me visita. O mundo tá todo virado do avesso, tudo tá mudado de quando eu fui criada.
- Nisso eu atalhei e intervim de novo -Mas, dona Pia o que tanto atrapalha a senhora na vivência diária com tantos filhos e bisnetos?
- Doutor, eu penso que seja esta eterna que veio dividir e apartar  as pessoas das outras. Todo mundo vive em seus cantos, nos  seus quartos.
- Como assim dona Pia, a senhora quando diz eterna, como se dá isso?
- Doutor, sabe aquelas máquinas de abrir e fechar que parece um “albo” ou aqueles tijolinhos luminosos que deixam as pessoas mudas e abobadas e nem escutam os outras?
- Ah sim dona Pia, a senhora quer dizer a internet
 - Isto mesmo doutor! A eternete 
- O mundo mudou dona Pia. E não tem volta. Mas a senhora me faz os exames, e ainda tem o retorno.  

 João Joaquim joaomedicina.ufg@gmail.com médico – cronista DM


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