A CULPA É DA ETERNA
A CULPA É DA ETERNA
João
Joaquim
Aquela senhora bateu em meu
consultório sem um sintoma bem definido. Maria de Fátima da Piedade. Pia era a
alcunha com que era conhecida de amigos e vizinhança.
- Mas, dona Pia o que motiva a
sua consulta?
- Doutor, nem eu sei direito o
que sinto. Na verdade se contar tudinho é um rosário de coisas de muitas
horas.
- Não importa dona piedade, quer
dizer dona Pia, o que interessa é a senhora me contar o que mais lhe aflige e
incomoda.
- Sabe doutor, sinto muita ausência,
uma ausência não dos sentidos, uma ausência de isolamento, de estar no mundo
sem ninguém em volta de mim, mesmo sendo mãe, avó e bisa de filhos, netos e
bisnetos.
- Tá bem dona Pia, mas vamos aos
outros informes de sua saúde, do passado de doenças, de como a senhora
viveu e toca a vida .
Para encurtar o perfil clínico de
nossa personagem, dona Piedade era potiguar de nascimento e batismo, mas tinha
sido criada em Castro Alves - BA, terra do poeta condoreiro e bardo das causas
abolicionistas. Tinha estudado somente os dois anos do ensino fundamental. Mal
lia, mal assinava o nome. Ia fazer 70 anos. Poucas vezes tinha ido ao médico;
era mãe de 13 filhos, fora os abortos de que não se lembrava quantos. Os
partos todos foram com amigas parteiras. Dos 13 filhos, 10 eram vivos. Os
outros três dos 13 tinham falecido ainda
recém-nascidos de causas ignoradas. Nunca tinha submetido a alguma
cirurgia, passou por uma internação de 4 dias na BA, por uma febre impalustre
(malária).
De remédios, dona Pia usava
apenas um comprimido de aspirina e algumas pérolas de arnica, receitadas por um
raizeiro.
Do mesmo curandeiro usava vez por
outra chás de sabugueiro e gotas do neca para algumas
"macacoas" e dor de cabeça.
Antecipo uma etapa do rito de uma
consulta médica padrão e adentro no exame físico. Dona Pia mostrava-se em plena
lucidez, suas expressões demonstravam uma idosa bem orientada no tempo e
espaço. Mostrava-se zelosa com a higiene corporal e sobriedade simples na
indumentária e adornos corporais. Os achados do exame clínico e aferições do
sinais vitais eram compatíveis com faixa etária; ou seja rugas da senilidade,
marcas de expressão acentuada no rosto, pele com marcas de exposição
solar Alguns exames básicos foram-lhe indicados buscando alguma disfunção
de tireoide, de rins, de pulmão, de glicose, de lipídios e exame de papanicolau
para rastreamento de câncer ginecológico. Lembro que nada a ver com o papa ou
com Nicolau , mas ao teste idealizado pelo famoso médico grego.
Retorno ao fecho da consulta
- Dona Pia, mas a senhora me dizia que
se fosse contar tudo seria uma prosa longa, um rosário de queixas de muito tempo.
De todo modo penso que deve ter algum incômodo, algum mal-estar que mais
atormenta. A senhora pode me escolher um.
- Tá bem doutor, muito do que
sinto, eu acho que é da vida sofrida, das pelejas da família, da criação e
labuta com os filhos. Fiquei viúva com 40 anos e tudo ficou nas minhas costas .
Hoje eu moro com outra irmã mais nova. Aqui e acolá algum filho me visita. O
mundo tá todo virado do avesso, tudo tá mudado de quando eu fui criada.
- Nisso eu atalhei e intervim de
novo -Mas, dona Pia o que tanto atrapalha a senhora na vivência diária com
tantos filhos e bisnetos?
- Doutor, eu penso que seja esta
eterna que veio dividir e apartar as pessoas das outras. Todo mundo vive
em seus cantos, nos seus quartos.
- Como assim dona Pia, a senhora
quando diz eterna, como se dá isso?
- Doutor, sabe aquelas máquinas
de abrir e fechar que parece um “albo” ou aqueles tijolinhos luminosos que
deixam as pessoas mudas e abobadas e nem escutam os outras?
- Ah sim dona Pia, a senhora quer
dizer a internet
- Isto mesmo doutor! A eternete
- O mundo mudou dona Pia. E não
tem volta. Mas a senhora me faz os exames, e ainda tem o retorno.
João Joaquim joaomedicina.ufg@gmail.com médico –
cronista DM