Cidadania doméstica

 Este artigo, um tanto digressivo e não menos real e ilustrativo se inspira numa frase dita por um experiente advogado. Frase: “Código Civil foi pensado e criado para os ricos e Código Penal para pobres”. O quanto de substancial e verdadeiro há nessa definição. O Civil trata muito de patrimônio, de heranças, de sucessões, de dinheiro, pensões para diversas situações. Agora, vá lá nos artigos do Código Penal, o quanto de penas, de restrição de liberdade existe.

Mais um pensamento interessante a se analisar: leis, códigos, regulamentos, normas de conduta, termos de ajustamento; todos foram criados para as pessoas desonestas, antissociais, antiéticas, desajustadas, incivilizadas, folgadas e aproveitadoras da boa-fé, da ingenuidade de outras pessoas, vítimas desses tais e quais indivíduos. Enfim, em poucos termos, as leis e penas foram elaboradas para punir criminosos, delinquentes e desonestos e proteger os cidadãos honestos e de bem.

Imaginemos o mundo, os espaços sociais, de trabalho, recreativos, não fossem as leis e regulamentos de convivência! Como seria? Conforme os convivas dos espaços compartilhados, residenciais, condomínios, no trabalho, nos espaços públicos, nas vias urbanas etc.;? seria uma autêntico inferno. Observemos bem o quanto de crimes ocorrem no interior dos domicílios, entre familiares, o quanto de gente desonesta que explora parentes e contraparentes. Porque existe a chamada tolerância, o medo, a evitação de ferir a sensibilidade daquele parente explorador e folgado, aproveitador do outro.

Em todas as relações humanas, foram-se as leis e códigos de conduta sendo necessários, para civilizar e educar as pessoas e contatos humanos nessas interações. Porque com admiráveis exceções, existem pessoas, muitas gentes que nada desses sistemas, normas e códigos de comportamento seriam necessários. A razão maior e primeira é simples: porque essas pessoas tiveram a primeira e maior escola, igualmente correta e ética, a Escola da Família. Não é demais lembrar, toda criança nasce boa, a família má é que vai corrompê-la. “Todo homem nasce bom, a sociedade é que o corrompe” – Rousseau. Qual primeiro espaço social que forma ou deforma o sujeito? A família.  

Dois belíssimos exemplos ilustram este tema. Imaginemos, em tese, e têm sido necessárias as regras de convivência em condomínios. Os cuidados de quem anda com seus pets. O animal late, morde, pula nas pessoas não afeitas a posse dos peludos, ele expele os excrementos nos ambientes dos humanos, ele é territorial e agressivo, ele não perde os instintos selvagens etc.; imagine então os donos que precisam de regras para transitar com os seus quadrúpedes ou ápodos (porque agora até serpentes são pets). Então precisam os outros condôminos de proteção, e regras para os incivilizados e mal-educados convivas. Imagine esse cenário.

Exemplo dois. Existe uma questão, ainda a ser alargada, a discussão e estudo da chamada Cidadania Doméstica. Basta termos em conta quantas são as pessoas que gostam de serem servidas e nunca servir aos outros. Quantas são as pessoas que em toda forma de convívio se regozijam e refestelam-se com os privilégios, com as distinções de tratamento, o comensal, o apetitoso, de galanteria, de elogios, de bem-estar de toda natureza; e nada, mas nada mesmo oferecem de contraponto. Na prática e de concreto, aquela jovem que chega em casa de um parente, senta-se à mesa, come do bom e do melhor, manjares, acepipes saborosos, é tratada como princesa e distinção. Elogios para lá, só para lá, para ela, bem servida e tal e etc.; findos os rega-bofes, a bofe da balzaquiana, sai leve e solta, senta-se confortavelmente no sofá a consultar celular e redes sociais. E a anfitriã, se passou por prendas domésticas, já meio idosa ou nem tanto precisa; a anfitriã vai tirar a mesa, lavar as louças, se esfalfar e limpar toda a sujeira. Faltou à jovem bem servida o que falta em muitas jovens e moços: a Ética Familiar e doméstica. Faltam formação cidadã e ética em muita gente. E cá entreouvidos, é muita cara-de-pau, não é?